A ação dos militares em cargos técnicos deu resultados surpreendentes em muitos casos. O General Euler Bentes Monteiro, que ocupou a Superintendência da Sudene de 1967 a 1968, levou para o posto a preocupação dos militares na execução de projetos concretos. Seu braço direito, o Coronel Stanley Fortes Batista, marcou de tal forma sua passagem na administração, que agora está-se preparando para assumir o governo do Piauí.
Outro coronel, César Calls Filho, depois de dirigir as obras de construção da Usina de Boa Esperança, no Maranhão, está indicado para o governo do Ceará. Mora em casa alugada, não tira férias desde 1958 e só janta em restaurante aos domingos, em companhia de toda a família. (No Ceará ele encontrará 35 oficiais ocupando postos de destaque no governo.)
MAIS UNIVERSIDADES - Para o General Idálio Sardemberg, colega de turma do Presidente Medici, a participação de militares na administração "é lucrativa para todos; para o Exército, pelo estágio de seus oficiais na vida pública, onde eles adquirem outras perspectivas dos problemas gerais do país, e para o Brasil, porque eles suprem uma carência bastante sensível, levando ainda a estes postos a disciplina e a honestidade profissional características de sua formação. A medida que forem crescendo as universidades e o elemento civil melhorar em quantidade e qualidade, pela concorrência, esta ascendência do militar tende a se reduzir: é uma preocupação do próprio oficial".
Em alguns setores, os militares atingiram postos de direção graças ao pioneirismo de seus cursos especializados. O Exército sempre se manteve atualizado em assuntos de eletrônica e siderurgia. Para o Ministério das Comunicações, o Presidente Garrastazu Medici destacou um coronel, Higino Corsetti, considerado um profundo especialista no assunto. Por outro lado, dos sete presidentes que a Companhia Siderúrgica Nacional teve até hoje, quatro foram militares.
O General Américo da Silva, que ocupa atualmente a presidência da empresa, vê no administrador militar, "por formação, um homem mais disciplinado e inflexível que o civil, sem que isso signifique nenhuma superioridade intrínseca da carreira. Tenho dois filhos civis e os respeito muito".
OS ÍNDICES FELIZES - Enquanto alguns só vão para cargos civis quando deixam as Forças Armadas, outros fazem o percurso entre o quartel e a administração várias vezes. Talvez, de todos eles, o exemplo mais completo seja o do aspirante de 1926 (Turma Laguna e Dourados, que formou o Presidente Medici), Juracy Montenegro Magalhães. Em 1930 comandou as forças revolucionárias na Paraíba. Em 1931 tornou-se interventor federal na Bahia, onde voltou a assumir o governo em 1935 e 1959. Presidiu a Petrobrás e a Companhia Vale do Rio Doce. Foi um dos fundadores da UDN, embaixador em Washington, ministro das Relações Exteriores e da Justiça. Hoje, Juracy Magalhães está dedicado à iniciativa privada, como diretor no grupo Monteiro Aranha. "Tenho um bom índice da minha felicidade como administrador e empresário. Sou dos primeiros acionistas de algumas companhias que chegaram ao rol das maiores empresas do país. Fui político enquanto esta condição honrava uma pessoa e deixei a política sem saudade e sem nenhum ressentimento."
Como empresário, Juracy Magalhães é considerado um homem muito bem sucedido. Todavia, pouquíssimos militares conseguem a felicidade dos índices obtidos por ele. Um general de Exército, depois de computar o soldo, as gratificações de tempo de serviço (quarenta anos), representação e moradia, pode receber por volta de 4.000 cruzeiros novos. Um capitão raramente ultrapassa os 2.000. Esses vencimentos sempre inferiores aos de profissionais liberais, num cálculo comparativo, encerram uma característica original: o cadete, com menos de vinte anos, ao entrar na Academia Militar, sabe que, haja o que houver, nunca chegará a ser um homem abastado. A viagem à Europa só virá em missão e será considerada como um prêmio; dificilmente poderá sair de suas economias.
A VOLTA DO SOLDADO - O General Canrobert Pereira da Costa, um dos militares da década de 50 que mais influenciou a oficialidade, morreu em sua casa do Méier, subúrbio do Rio. Os marechais Castelo Branco e Mascarenhas de Morais deixaram para a família apenas os apartamentos onde viviam e poucas ações.
Os apertos financeiros poderiam ser um importante argumento para convencer o oficial a uma rápida transferência para a administração civil, mais bem paga e flexível. Contudo, vários militares preferem deixar os importantes cargos que ocupam a reverter para a reserva, depois de passados os dois anos de afastamento permitido da tropa. O General Afonso de Albuquerque Lima deixou o Ministério do Interior, o General Arthur Candal da Fonseca abandonou a presidência da Petrobrás - a maior empresa do país - e o Coronel Euler Bentes demitiu-se da Sudene.
SER MILITAR - É na Academia Militar, misto de universidade e de escola técnica, que o cadete do Exército planta as bases de toda a sua vida futura. "Ser militar", diz um folheto da Academia, "é estar imbuído da verdadeira necessidade do cumprimento da missão, por mais árdua que se lhe afigure e pouca influência traga para lhe exaltar os méritos". A carreira militar é apresentada ao cadete como uma atividade de sacrifício, de sobriedade pessoal e de patriotismo. "As ações do verdadeiro militar", continua o documento, "não objetivam obter vantagens ou vencer questões; não devem ser ditadas por oportunismo, nem podem ser poluídas pela descrença, traços de inferioridade incompatíveis com a nobreza de sua missão."
A RAZÃO DA DISCIPLINA - Coesão, disciplina, respeito à hierarquia, desambição, preparo físico e intelectual: sobre pilares assenta-se a educação do oficial do Exército. A disciplina - viga mestra de toda organização militar - é defendida como uma necessidade vital para todos. "Para convencer o homem da necessidade da disciplina", ensina o Manual, "nada melhor do que apelar para a sua razão; nos poucos casos em que o apelo falha, a punição oportuna pode corrigir o recalcitrante e fazê-lo sentir essa necessidade."
AS RAZÕES DO CADETE - A vida relativamente dura de um cadete, comparada à de um jovem da mesma idade no meio civil, não desestimula os civis a procurarem a carreira militar? Até 1966, a AMAN sofria de perda crescente de entusiasmo por parte de candidatos à matrícula. A partir de 1967, com uma propaganda desenvolvida pela Academia e ajudada pela portaria que permite o ingresso sem concurso dos alunos classificados nos três primeiros lugares nos cursos colegiais, a situação se alterou. Hoje, com 1.379 cadetes (número recorde), a Academia pensa ter superado o problema e, segundo o General Meira Matos, poderá dispensar a portada no próximo ano. "Nós tivemos agora novecentos candidatos civis disputando sessenta vagas", explicou o general. O rigor da carreira militar e sua desvantagem financeira comparada com as atividades privadas não preocupam os cadetes. Eles procuram o Exército por outras razões. "O primeiro motivo de meu interesse pela carreira militar foi a evidência em que ficou o Exército nos últimos tempos. Em segundo lugar, a propaganda chamou a minha atenção para as vantagens do ensino da Academia, explica a VEJA o cadete Geraldo Soares Silvino, 22 anos, quartanista da Arma de Engenharia e há três anos colocado em primeiro lugar na AMAN.
DE ASPIRANTE A GENERAL - Ao deixar a Academia como aspirante a oficial, o jovem que cruza de volta o pequeno portão lateral da AMAN já cumpriu a maior parte da formação básica do oficial. Daí para a frente haverá apenas uma complementação, ou nas escolas especializadas do Exército (Comunicações, Educação Física, etc.), ou nas escolas de aperfeiçoamento - Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (ESÃO), Escola de Comando do Estado-Maior (ECEME) e Escola Superior de Guerra. Quando chega à ECEME - estágio obrigatório para a ascensão ao generalato -, o oficial já assimilou todo o Manual de Chefia, o Código de Honra e a doutrina militar. Agora, nos cursos da ECEME (dois anos tanto para Chefia e Estado-Maior de Serviços como para Comando e Estado-Maior), o oficial desenvolve sua capacidade de concatenar idéias, consolida suas convicções cívico-democráticas, aprende a ter de agir e decidir sob tensão, cultiva padrões morais elevados (qualquer deslize anterior veta automaticamente seu ingresso na Escola), procura incentivar o espírito de decisão e desenvolver "a afirmação da vontade e a consciência da responsabilidade", além de estudar a doutrina militar em vigor e as suas tendências de evolução. Essa doutrina tem sido alterada ao longo das últimas décadas.
O MUNDO VAI FALAR - Até a Segunda Guerra Mundial predominava a influência francesa, que conferia ao Exército o papel de "grande mudo" dos acontecimentos políticos e provia o oficial de cultura humanística derivada do positivismo. Sua estratégia era voltada para as hipóteses de guerra contra os inimigos do século passado: Paraguai, Uruguai e Argentina. Após a Segunda Guerra, com a influência americana, a doutrina militar ensinada na AMAN (que foi fundada em 1944) e na ECEME deu ênfase ao estudo das questões sociais e políticas e aos novos conceitos de estratégia, que consideravam em primeiro lugar o choque ideológico entre a democracia e o comunismo, com hipóteses de guerras extracontinentais. Foi o agravamento das tensões sociais a partir da renúncia de Jânio Quadros que deu ênfase ao estudo da estratégia de luta contra a guerra revolucionária interna.
A NOVA TAREFA - Ao concluir a ECEME, o oficial está apto a chegar ao generalato. Maior do que isso, porém, é o seu preparo intelectual nas doutrinas de segurança nacional e desenvolvimento, em comparação com a classe política em geral. Após quatro anos de AMAN, dois ou três da ESAO e ECEME e mais o tempo em que serve normalmente na tropa, o oficial do Exército (bem como da Marinha e da Aeronáutica) está profundamente tomado pelo sentido da ordem e da disciplina, da hierarquia e do senso do dever. Sua formação gregária deixou-o afastado diretamente das convulsões e tensões da vida civil. O Exército garantiu-lhe a habitação, o soldo e o trabalho, juntamente com a assistência à sua família. Ele adquiriu um conceito enraizado de moral, de culto às tradições, de zelo pela ordem social e pela estabilidade política. O poder político parece-lhe antes um dever de responsabilidade do que um fim em si mesmo. ("Recebi a Presidência da República como uma tarefa a cumprir", afirmou por duas vezes o General Garrastazu Medici. "Vejo o poder como um instrumento para servir", disse o Marechal Castelo Branco, em 1965.) E parece ter sido possuído desse espírito generalizado que o militar assumiu o poder político no Brasil nestes últimos seis anos.
A DIFÍCIL ARTE - Em geral, os militares explicam mais facilmente do que os políticos a sua passagem pelo governo. Em declarações a Gilberto Pauletti, repórter de VEJA, o comandante do III Exército, General Breno Borges Fortes, assinalou: "Concordo em que muitos militares chamados a exercer cargos na administração pública têm desempenhado suas novas funções com grande sucesso, embora tratando de assuntos completamente estranhos à sua profissão específica. Creio que a estranheza que isso provoca é causada, muitas vezes, por não estarem bem informados sobre a formação e as atividades normais dos militares. Citemos algumas particularidades: em primeiro lugar, o militar tem uma formação universitária - o que lhe dá a indispensável visão de conjunto; em segundo lugar, mas não menos importante, sua função normal de comando nos diversos escalões permite que se exercite desde jovem na difícil arte de chefiar".
A BOA MISTURA - Como age um militar na função pública? Ao chegar à Presidência da República, o Marechal Castelo Branco procurou cercar-se de assessores mais experientes na administração pública, tanto militares como civis. Um seu auxiliar direto ouviu do presidente como ele tomava as suas decisões: "O Dr. Roberto Campos me traz conhecimento - articulado, exato e profundo; o General Geisel (Ernesto, atual presidente da Petrobrás) me dá julgamento de valor, sempre tem uma opinião sobre os assuntos; o Golbery (então chefe do SNI) me dá o reverso da medalha, é sempre bom para crítica e informação; e o Dr. Luís Viana (atual governador da Bahia) me dá o estilo". Apesar de sua relativa inexperiência, Castelo Branco tornou-se "algo de inesperado em política", segundo explicou o ex-ministro Roberto Campos: "Como oficial de estafe, ele tinha uma aguda experiência de análise, um insuspeitado 'jeito' para o convívio político e uma extraordinária capacidade de localizar a veia jugular no corpo da ciência econômica".
Os instrumentos poderosos que a Revolução colocou nas mãos dos seus três governos contribuíram para facilitar a ação governamental, especialmente na área econômica. "Houve casos em que a firmeza do Presidente Castelo Branco em apoiar o saneamento financeiro foi importante", comenta Roberto Campos, enumerando as medidas impopulares adotadas em 1965, tais como o chamado "arrocho salarial", a substituição da estabilidade pelo Fundo de Garantia e a reforma agrária, "hostilizada por boa parte da liderança rural e da burguesia industrial, que haviam dado grande apoio à Revolução".
A FORÇA DA INDEPENDÊNCIA - Para o atual ministro da Fazenda, Delfim Netto, os militares estão capacitados a adotar soluções aos problemas nacionais, principalmente por serem desvinculados de grupos econômicos. "Que ministro da Fazenda poderia ter enfrentado os banqueiros, como ele fez, e continuar no cargo", observou um velho funcionário do Ministério da Fazenda. Segundo o ministro da Fazenda, os militares traçaram com nitidez e convicção as metas para um desenvolvimento com estabilidade externa e melhor distribuição de renda nacional. E os êxitos da política econômica desde 1964 - redução da inflação de 85% para os 18% esperados este ano, crescimento econômico de 7% ao ano, 760 milhões de dólares em reservas cambiais em 1969 - podem ser atribuídos à coerência e à firmeza com que os militares perseguiram aquelas metas econômico-sociais. Sem a centralização do poder praticada na URSS, os militares optaram por um modelo misto, que concilia a liberdade com a intervenção estatal nos setores de segurança nacional (telecomunicações, transportes, energia elétrica, etc.), ficando ainda nas mãos do Estado cerca de 70% dos depósitos bancários do país. Esse apoio da Revolução às medidas de recuperação financeira e contenção econômica se deu mesmo quando não havia unanimidade entre os militares sobre certas medidas. "No início, alguns setores militares ficaram preocupados com as medidas do governo, que não refletiam a tendência de desenvolvimento e, sim, de controle de inflação", diz o ex-ministro da Fazenda do governo Castelo Branco, Otávio Gouvêa de Bulhões.
A HERANÇA DA FORMAÇÃO - Depois de doze anos em cargos civis, o atual ministro do Interior, General Costa Cavalcanti, 52 anos, antigo secretário da Segurança de Pernambuco (onde combateu as Ligas Camponesas) e deputado federal, não se considera um militar na política, "mas um administrador com experiência política". Tido como um dos coronéis "linha dura" de 1964, oficial colocado em primeiro lugar na sua turma da ECEME, ele diz que os militares em funções executivas levam para os cargos a herança da formação militar, como a disciplina e o método cartesiano de trabalho, que consiste em colocar os problemas, examinar as alternativas possíveis e meios disponíveis, para só depois adotar uma decisão. Durante um dia inteiro, o chefe da sucursal de VEJA em Brasília, Luiz Gutemberg, acompanhou a rotina de trabalho do Ministro Costa Cavalcanti, constatando que os seus hábitos puramente militares (a disciplina nos horários, a formação de pequenas equipes, a cobrança das tarefas distribuídas e o poder de decisão final jamais delegado) continuam sendo os mesmos do ministro. Algumas idéias e posições políticas de Costa Cavalcanti: "Sou nacionalista, sim, mas sem aspas; eu não admitiria nunca ter entre os meus auxiliares um esquerdista; sou contra o barateamento do conceito de segurança nacional; não há dúvida de que a maioria do Exército deseja a democracia: mas que essa democracia plena venha progressivamente, que não avancemos três passos para recuar cinco".
Artigo publicado na VEJA em 1º de abril de 1970.
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