O reitor Jacques Dehaussy, da Universidade de Dijon, na França, ao fim
dos anos 70 do século passado, presidiu simpósio sobre o Papel
Extramilitar das Forças Armadas no Terceiro Mundo. Cientistas
políticos e mestres universitários dedicaram-se ao exame da incidência
dos golpes de Estado no Terceiro Mundo, violando a subordinação dos
militares ao poder civil. Ainda que os Anais de Tácito não se prestem
a tirar conclusões sociológicas de todos os eventos por ele vividos na
decadência do Império Romano, distinguem-se as modalidades das
intervenções, segundo o epílogo do simpósio. As mais arcaicas originam-
se do caudilhismo, das ditaduras puramente pessoais, ou da defesa dos
privilégios da profissão. Outras - reconheceram os participantes do
estudo do tema - responderam ao apelo vindo de fora dos quartéis, dos
civis que invocaram a consciência dos militares, ou a impaciência
deles para com os desmandos do poder civil.
Participei de dois golpes de Estado, um como tenente, cumprindo ordem
superior, e outro coordenando-o como tenente-coronel, no Pará. No
primeiro, depusemos o ditador Getúlio Vargas, em 1945. O poder civil
não se fez respeitado, mas logo restabelecido na subordinação dos
militares ao Supremo, para presidir a redemocratização do país. O
general José Pessoa, em nome do Exército, foi à casa do ministro José
Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal, e em nome das Forças
Armadas convidou-o a assumir o governo e convocar eleições, que logo
se realizaram.
O segundo golpe proveio do "apelo dos civis à consciência dos
militares" para com os desmandos do governo e uma ameaça, em plena
guerra fria, de aliança do governo com os comunistas. No Pará, onde eu
servia, havia-nos preparado para prevenir um autogolpe de Jango,
aliado a Prestes, intentando o estado de sítio e a reforma arbitrária
da Constituição, enquanto paralelamente Leonel Brizola pregava o
fechamento do Congresso. A aliança com o PCB, de que Prestes era o
primeiro-secretário, conta-a Luiz Carlos Prestes no livro Prestes,
lutas e autocríticas, por ele ditado a Dênis de Moraes, da sua grei.
Revela, ademais, que Jango, em plena expansão do comunismo
internacional, "até já compreendia o papel que exercia a União
Soviética".
Fixamo-nos no plano de resistência ao que um comunista, que não
deforma a história, denominou de pré-revolução, com apoio dos líderes
sindicais e dos sargentos. Em Brasília, sargentos da Aeronáutica e da
Marinha, armados, tomaram, em setembro de 1963, o quartel dos
fuzileiros, ocuparam os ministérios e os órgãos de comunicação.
Travaram luta com tropas do Exército, com mortes, até se renderem. Em
março de 64, outro motim. O dos marinheiros no Rio de Janeiro. Os
fuzileiros navais que, de ordem do ministro da Marinha, foram mandados
para prendê-los, solidarizaram-se com os amotinados.O presidente
aceitou a demissão do ministro e o substituiu por outro simpático aos
revoltosos.
A disciplina e a hierarquia, pilares de qualquer força armada,
desmoronadas transformaram os amotinados em bandos armados
prestigiados pelo próprio presidente da República. No livro de
Prestes, há uma passagem em que Jango quis apresentar-lhe uma dezena
de generais que lhe seriam leais. Prestes diz que nunca foi
apresentado aos generais, mas que "Jango se enganava com eles, pois
lhe conhecia a postura anticomunista".
A desordem civil e a amotinação dos militares graduados já eram parte
da disputa pelo poder. Que mais faltava para conquistá-lo? A imprensa,
com a única exceção da Ultima Hora, clamou pelo afastamento do
presidente Goulart. No Rio de Janeiro, o Correio da Manhã, no dia 30
de março, clamava, na primeira página: "O Brasil já sofreu demasiado
com o governo atual. Agora basta!". No dia seguinte: "Só há uma coisa
a dizer ao senhor João Goulart: saia!". O Correio não estava só. O JB,
em editorial, levanta a suspeita de ameaça comunista: "Quem quisesse
preparar um Brasil nitidamente comunista não agiria de maneira tão
fulminante quanto o sr. João Goulart a partir do comício de 13 de
março".
Da mesma ameaça trataram editoriais de O Globo. A Folha de S.Paulo, em
face do comício, em que as bandeiras da foice e martelo desfilavam na
frente do palanque de Goulart, desafiava: "Resta saber se as Forças
Armadas ficarão com o presidente, traindo a Constituição, ou
defenderão as instituições e a pátria". O prestigioso jornal Estado de
Minas se antecipara. A 18 de março, alertava: "A sorte está lançada.
Ninguém tem mais o direito de iludir-se. Abrem-se agora dois caminhos
ao Brasil: a democracia e o comunismo". Em São Paulo, a passeata "com
Deus e pela Liberdade", liderada pelas mulheres contou com quase 1
milhão de civis e religiosos. Goulart, no auge da agitação e da
falência da disciplina militar, proferiu, dia 30 de março, exaltado
discurso no encontro com um milhar de sargentos, que o homenageavam no
Automóvel Clube do Rio de Janeiro. Prestes comenta no livro: "Qual é o
oficial do Exército que vai ficar tranquilo sabendo que o presidente
da República se dirige, naquela linguagem, aos sargentos?". Jango
detonou a contrarrevolução, apoiada maciçamente pelo povo. Não houve
um só tiro disparado.
São passados 45 anos. Hoje, a contrapropaganda da esquerda ousa negar
provas indesmentíveis. A verdade incomoda e a isso não voltarei. É
inútil convencer mitômanos, a serviço dos resíduos do comunismo
fracassado.
*Foi ministro de Estado, governador e senador
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