por: Nivaldo Cordeiro
Caminhava eu ao lado do meu amigo Antonio, um advogado grandalhão que
trabalha numa grande banca de advocacia, quando alguém me tocou no
ombro. Era o Quinho, sempre sorridente. Antonio e eu discutíamos o
artigo publicado há dias no Estadão, de autoria do irmão do Celso
Daniel, aquele cara que era prefeito de Santo André, cotado para ser
ministro da Fazenda de Lula e que foi barbaramente assassinado, depois
de seqüestro muito mal explicado. "Bom dia, doutor, tudo bem?"
Cumprimentei sorrindo também e falei para meu amigo; "Conhece o
Quinho?". Vieram os cumprimentos de praxe e Antonio ficou todo
interrogações, curioso para explicar aquela minha intimidado com o
morador de rua. Disse-lhe:
– Antonio, o Quinho é um filósofo. Sabe tudo que se passa na política. É
o ouvido das ruas e os olhos da consciência de São Paulo. Pergunta para
ele o que acha do caso Celso Daniel.
Quinho nem esperou a pergunta, tinha opinião na ponta da língua:
– Uma maldade, doutor, o que fizeram ao prefeito. Como pode? Homem bom,
bem formado, p-r-e-f-e-i-t-o! Ia ser ministro do Lula e fizeram essa
barbaridade com ele. O que me dói mais é o sofrimento da família,
especialmente do irmão, o Bruno. Outro homem bom e íntegro. Um valente.
Clama por Justiça desde sempre e caiu em desgraça por isso. Foi até
exilado. Esse negócio é feio.
Antonio surpreendeu-se com a loquacidade e a clareza do Quinho. Naquele
dia meu filósofo predileto estava diferente, vestindo calça e camisa
pretas. "Está de luto, Quinho?", perguntei, em tom mais elogioso que
curioso. "Não, doutor, é que gosto de preto. Está na moda. Realça minha
pele escura. Ganhei essas roupas e resolvi estrear. Gostou?" "Ficou
bom", respondi.
Antonio, depois de alguma hesitação, entrou no clima da conversa e
perguntou ao Quinho o que ele achava do caso. Quem matou Celso Daniel?
Quem mandou matar? Quem ganhou com isso tudo? Claro, como advogado
criminalista ele estava bem informado dos bastidores do caso. Ia às
delegacias e aos tribunais, conversava com os agentes da lei, mas Quinho
tinha a voz das ruas.
– Doutor Antonio, não tem nada de esquisito nessa história exceto o fato
de que trancaram politicamente o processo.
O espanto do Antonio foi instantâneo. Como aquele sujeito podia usar a
linguagem jurídica assim? Será que ele sabia o significado técnico da
expressão "trancar processo"? A atenção e interesse do Antonio
aumentaram. Quinho: "Olha, se o Lula não tivesse sido eleito esse tal
Sombra estaria nos ferros e o mandante, aquele aspone graúdo do Lula, o
papa-hóstia, também. E muito mais gente, que um homem grande desses não
ia ser derrubado por um sujeito qualquer. Mas sabe como é, todo mundo
sabe que aqueles caras metidos a revolucionários que estão na cúpula do
PT não são de brincadeira. Para eles, os fins justificam os meios. Todos
discípulos de Rousseau e Maquiavel. Revolucionário é revolucionário,
estando dentro ou fora do governo. Esse rapaz, o Celso, boa gente, não
entendeu que revolução exige entrega integral da alma. Tem que fazer o
que a cúpula manda, senão é justiçado. Esse é um caso típico de
justiçamento revolucionário".
Continuou Quinho:
– O Celso não quis ir fundo nas maracutaias e virou dois problemas em um
só, para os chefes. Atrapalhava do ponto de vista tático, não permitindo
maior arrecadação de fundos, e ainda se credenciava a ser ministro da
Fazenda, um problema estratégico ainda maior. Não podia ser ministro
quem não aceitava as ordens da cúpula para fazer as ações
revolucionárias de obtenção de fundos, que é assim que eles chamam o
modo petista de roubar. É só ver o que fez a turma do mensalão, com Zé
Dirceu e Palocci. Celso criaria dificuldades com suas crises de consciência.
– As pessoas dizem isso? Perguntou Antonio.
– As pessoas não são tolas, Doutor Antonio. Lembra do papelão do governo
estadual do PSDB, à época, que abafou o caso? Muito esquisito. O caso
poderia ter decidido a eleição presidencial e a turma do Fernandão
amarelou para os vermelhos. Acho que tinha acordo. Lula tinha que
ganhar. Se o caso fosse rapidamente esclarecido e julgado os petistas
não estariam no poder agora, completou Quinho.
Fiquei admirado. Mas não era mesmo lógico? Se a investigação tivesse
apontado os mandantes e levado a julgamento todos os responsáveis o
impacto político teria sido devastador.
– Tudo político, Doutor Antonio, político, sublinhou Quinho. Pois,
quando os "homes" querem, a polícia funciona direitinho. Não há segredo
nenhum para os "homes". Mas o governador tem que deixar. Se não deixa,
fica tudo na sombra. Puseram o Sombra nas sombras, riu-se do trocadilho.
Já se hospedou numa delegacia? Eu já. Ali é fábrica de loucos. O poder
de Estado é absoluto ali. As masmorras são o local onde o indivíduo fica
mais diminuído e o poder desse mundo cresce em proporções ciclópicas. Só
Deus para ajudar.
Silêncio. Quinho nem se deu conta do impacto que causou em nós dois.
Perguntei: "E você, Antonio, o que acha?"
– O pessoal da polícia, meus amigos, também pensa assim. Aquele esquema
na secretaria de Transportes era rendoso e pagou muita conta das
eleições. Muito interesse envolvido. O prefeito quis dar uma trava e foi
estornado, disse Antonio.
– Sabe, doutor, completou Quinho olhando nos meus olhos, que a política
é um negócio muito sujo. Não mataram mais gente porque o Brasil é Brasil
e aqui rola muito samba. Viu o caso do Roberto Jefferson, o traidor?
Achei que os petistas iriam apagá-lo, mas que nada. Celso Daniel salvou
a vida dele com seu sacrifício. Sangue chama sangue e sai caro. Não é
como nos Estados Unidos, que a turma bota para quebrar. Matam até
presidente, mesmo quando os tempos não são de revolução. Aqui atualmente
todo mundo é revolucionário, até a Polícia Federal. Viram que o
Protógenes, o delegado do povo, é filiado ao PSOL? Onde já se viu
delegado revolucionário? Delegado tem que ser reacionário, mas aqui é
assim: nada se cria, tudo se avacalha. Mesmo na Cuba de Fidel delegado é
reaça.
– Você leu o artigo do Bruno Daniel, no Estadão? Perguntei-lhe
– Li, respondeu Quinho. O Bruno faz a sua parte no artigo, denunciando a
morosidade da Justiça, mas erra em um ponto. O problema da Justiça não é
o excesso de recursos permitidos aos acusados. Nesse caso específico, é
a interferência do poder político no trâmite judicial. Justiça não pode
fazer linchamento, tem que permitir defesa. Se tivermos um sistema de
julgamento sumário aí acaba a democracia e começa a ditadura. Não pode.
Para proteger as pessoas do Estado é preciso que ele seja gradualístico
e ritualístico, tudo dentro da lei. Senão esmaga os indivíduos.
Novo silêncio. Antonio me olhou incrédulo. Não podia acreditar no que ouvia.
– No dia em que as pessoas forem julgadas sumariamente aí dou um jeito
de fugir do Brasil. Vou para o exílio, que rua é igual em qualquer
lugar. Não pode. Até morar na rua, o ato de liberdade mais radical que
alguém pode assumir, como eu fiz, pode virar crime. Crime de liberdade,
ouviram? Não dá. E, com os revolucionários no poder, as penas podem
ficar aleatórias e irracionais. Vejam o que houve com a dona da Daslu,
uma moça boa e honesta que pegou cana de 94 anos por uma ninharia. Esses
comunistas legislando estão criando o inferno na terra. A lei está
virando uma ameaça às liberdades, uma loteria.
Antonio não escondeu o seu espanto e entusiasmo, Queríamos continuar
conversando, mas tínhamos trabalho a nos esperar. Quinho apertou
calorosamente as nossas mãos e foi-se, sorrindo. Antonio e eu fomo-nos
também, meditando naquilo que ouvíramos. Uma lição de filosofia política.
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