José Nêumanne
E o presidente pôs fim à exumação da guerra suja usando uma falácia
O presidente da República pode não ser um homem letrado nem ilustrado, mas até seus adversários mais ferrenhos, que não toleram a hipótese do terceiro mandato nem em pesadelo, devem concordar que ele tem um bom senso invejável, além de um enorme talento para driblar obstáculos. Foi o que ele fez, aparentemente de maneira brilhante, na semana passada, ao encontrar uma solução salomônica para a proposta inoportuna e insensata feita por seu ministro da Justiça, Tarso Genro, e seu secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, de reabrir unilateralmente a Lei da Anistia para punir apenas os torturadores.
Se cedesse à pressão dos comandantes militares e desautorizasse os dois auxiliares na cerimônia de apresentação dos novos oficiais-generais, terça-feira 12, no Palácio do Planalto, poderia passar a impressão de que carece de apoio da caserna para permanecer no legítimo posto em que está por decisão majoritária e soberana do povo brasileiro. Se, ao contrário, nada falasse, autorizaria uma insensata exumação de esqueletos da guerra suja, que não se sabe a quem poderia interessar, mas com certeza não interessa à sociedade nacional nem, por extensão, à paz em seu governo. O presidente calou na reunião com os oficiais, mas falou mais tarde em cerimônia no quartel-general de um dos maiores inimigos dos militares descontentes com a proposta de Paulo e Tarso: a União Nacional dos Estudantes (UNE). A escolha do lugar exalta os méritos do estrategista. A frase cunhada para encerrar o assunto comprova seu talento inato e invulgar de lidar com as palavras, ainda que muitas vezes atropele a gramática. Num arroubo digno de fazê-lo figurar entre os governantes que se celebrizaram pelo estilo conciliador quando detinham o bastão de mando, de dom Pedro II a Getúlio Vargas, de Bernardo Pereira de Vasconcelos a Tancredo Neves, Lula jogou o tema para escanteio num carrinho retórico, sem machucar ninguém: ele afirmou que era preciso "transformar os mortos em heróis, e não em vítimas".
A sentença funcionou como um calmante para os quartéis inquietos com a reabertura da discussão imprópria. Os comandantes e seu chefe, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, saíram comemorando o encerramento da discussão e a dupla Paulo e Tarso não se sentiu desautorizada nem repreendida. Mas a reencarnação do justiceiro rei hebreu Salomão no ex-dirigente sindical metalúrgico não passa de um truque impreciso do ponto de vista semântico, de lógica canhestra e falacioso no ângulo histórico, embora muito sagaz politicamente. Não há, ao contrário do que a sentença insinua, oposição entre a condição de vítima e o heroísmo. Há até muitas vezes uma relação estreita, embora não obrigatória: nem toda vítima é herói, mas muitas vezes o herói tem de ser vitimado antes, assim como o é o mártir.
No caso que serviu de tema à fala presidencial, quem foi torturado na ditadura militar exige tratamento de herói da democracia, embora não o tenha sido. Salvo raras exceções que confirmam a regra, os inimigos da ditadura militar de direita não lutavam pelo Estado Democrático de Direito, mas por outra ditadura, de sinal oposto, cujos exemplos - a Rússia de Lenin e Stalin, a China de Mao, a Cuba de Fidel Castro ou o Camboja de Pol Pot - são tão próximos de uma democracia quanto as tiranias de Nero, Calígula, Gengis Kahn, Hitler, Franco e Mussolini. Houve, sim, heróis da democracia na resistência civil contra os militares no Brasil - e Lula está entre eles, pois ajudou a desmoralizar a legislação autoritária com as greves que liderou, à custa de prisão e pena. Mas nenhum deles pegou em armas para enfrentar a ditadura.
Ao contrário do que imaginam os ingênuos que crêem nas versões falaciosas politicamente corretas de que havia nas ruas das metrópoles e nos sertões do Araguaia mais uma versão do conflito entre o Bem e o Mal, a idéia de derrubar o regime autoritário pelas armas não contribuiu para sabotá-lo. Mas colaborou para torná-lo mais cruel e talvez mais longevo. A ditadura durou mais do que era previsto que durasse pelos oficiais que interromperam o mandato de João Goulart, em 1964, porque teve a própria fúria contra as instituições nutrida pela aventura insensata dos que tentaram implantar no Brasil as idéias insanas do foquismo cubano dos barbudos de Sierra Maestra. E terminou ruindo sobre os próprios pés de barro, com a ajuda de democratas de verdade que participaram da difícil reconstrução das instituições enquanto muitos aventureiros da guerra suja ainda sonhavam com o sangrento assalto ao poder.
A dupla Paulo e Tarso não está sozinha na leitura distorcida destes eventos históricos. As comissões de burocratas que distribuem generosamente dinheiro público à guisa de remunerar os serviços prestados à luta contra a ditadura prestam idêntico desserviço à Nação. Não tem sentido subtrair dinheiro que deveria servir para resgatar a tal da dívida social, à qual Lula vive se referindo, para pagar indenizações milionárias a ex-combatentes que optaram pela luta e agora tratam essa opção imatura, mas consciente, como um investimento, conforme apontou com lucidez Millôr Fernandes. A notícia da entrada de 175 ex-militares, que logo serão seguidos por mais 425, na Justiça contra a União para pedir indenização por terem combatido no Araguaia parece absurda apenas por causa da conclusão equivocada de que havia algozes, num lado, e vítimas, no outro. Essa conclusão ganhou foros de verdade absoluta, sem fundamento histórico algum, pelo uso competente e cínico da lição dada pelo mago da propaganda nazista, Joseph Goebbels, segundo quem uma mentira se torna verdadeira se incessantemente repetida.
Vítima então e herói sobrevivente da luta dos democratas contra a ditadura, Lula recorreu à falácia para ganhar apoio e votos. Seria tão bom se deles fizesse melhor uso!
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde
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