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04/01/2008
A obra O PRÍNCIPE, de Maquiavel, é certamente o marco decisivo para a modernidade e se opõe diretamente aos valores não apenas cristãos, mas também àqueles da tradição de Sócrates, Platão e Aristóteles. Esse livro é o manual para novos príncipes que irão surgir desde então, tornando-se o pai de todos os aventureiros políticos e a bíblia daqueles que construíram os partidos de vanguarda. Maquiavel conseguiu transformar todos os vícios e canalhices da política nas virtudes por excelência dos governantes. Tresvalorizou todos os valores muito antes de Nietzsche, filósofo que fechou o ciclo macabro aberto pelo florentino no campo da política.
Não que a canalhice não fosse prática corrente desde tempos imemoriais onde se organizou alguma forma de Estado. É próprio da política a violência, a traição, a rapina. A guerra, diz a expressão consagrada, é a continuação da política por outros meios, e nada há de mais atroz do que a guerra. O que Maquiavel fez foi teorizar a canalhice e dar sustentação filosófica para ela. Não é possível compreender o morticínio perpetrado na modernidade, desde a Revolução Francesa pelo menos, sem que essa filosofia seja devidamente situada na motivação e na justificação da ação dos atores políticos. Que seria de Napoleão sem Maquiavel? E de Lênin? E de Hitler? E de todos os herdeiros gnósticos da modernidade? Marx e Nietzsche são santos perto do que fez Maquiavel.
Estudiosos da obra do florentino não se cansam de exaltar a fria lógica e o cálculo racional que ele emprestou ao estudo da ciência política. E, no entanto, quedam surpreendidos com o elemento mítico com que o autor fecha a obra, ao falar da Fortuna ou, em termos astrológicos, da Roda da Fortuna, a X carta dos Arcanos Maiores do Tarô, que era ao que ele se referia verdadeiramente. A questão colocada é que todos os aventureiros poderiam usar do manual maquiavélico, como aliás têm feito desde sempre. Por que apenas alguns chegam lá, como Lula lá, e outros fracassam redondamente, como Luiz Carlos Prestes? Por que outros são efêmeros, como o nosso Fernando Collor de Mello? [As declarações da ex-esposa Roseane à revista Veja, relatando os sacrifícios de animais no quintal da Casa da Dinda pelas madrugadas quando ele era presidente da República – 3 da manhã é a hora satânica – são fatos ilustrativos de como o elemento irracional demoníaco pode tomar conta das personalidades mais proeminentes. O poder pode literalmente enfeitiçar aqueles que foram por ele fascinados]. Efêmeros como Hitler, este que também era um satanista emérito? E por que outros se mantêm no poder até a morte, como Lênin, Mao e Fidel Castro?
Não basta o manual de canalhice para ser bem sucedido, disso Maquiavel sabia. O símbolo da Roda da Fortuna é encimado por uma figura que é metade anjo e metade demônio. É, a meu ver, uma excelente representação pictórica do poder, que pode ter tanto um lado benéfico como um lado maléfico, dependendo de quem esteja a exercê-lo. Platão e Agostinho criaram a tradição de que deve o governante buscar a Justiça, sendo esse o papel fundamental do poder de Estado, a sua missão por essência. A política, para eles, era a arte de praticar a Justiça. Por isso São Paulo escreveria sobre a fundamentação divina do poder. Do governante esperava-se ao menos a boa intenção.
Maquiavel joga na lata do lixo a investigação das virtudes, despreza a missão de Justiça e recomenda expressamente que os candidatos a novos príncipes sejam mal-intencionados. Que Justiça que nada! Põe ele as armas como o único sustentáculo do poder. Obviamente que isso é um erro, a negação da essência do elemento civilizacional. Maquiavel tem, no entanto, o mérito de reconhecer esse elemento transcendente que condiciona o poder de Estado e a ação dos seus agentes, fato que seus discípulos posteriores negam ou abandonam. Esqueceram-se do principal.
Quanto maior o orgulho, maior será a queda. Ou, dito de outra forma, quanto maior a ambição política, maior a frustração. Hitler terá sido o mais audacioso dos revolucionários, o mais temerário e, no entanto, foi consumido pelas chamas de sua paixão. Queimou numa pira funerária, uma maneira plástica de ser remetido aos infernos. Muitos ditadores seguiram o seu caminho. Permanece a questão de saber porque o governante malvado pode morrer no governo, em pleno exercício do poder totalitário.
Entendo que as coisas do poder não são alheias a Deus. O jovem teólogo Ratzinger, no seu brilhante INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO, escrito quando ainda não tinha as responsabilidades que hoje tem, sugere haver um elemento irreconciliável entre o reino desse mundo e as coisas de Deus. Por isso o Deus de Abraão não tinha território, vivia em tendas, uma maneira bastante didática de dizer que não era um Deus estatal, não era um concorrente de Baal e Moloch. É aquele que é, o Deus vivo. Da mesma forma, Cristo rejeita peremptoriamente a terceira tentação que lhe fez o Demônio e disse a quem queria ouvir que seu reino não era o desse mundo.
Penso que a contribuição do homem virtuoso à política é se manter virtuoso quando do exercício da política. Ao contrário do que pensava Maquiavel, isso não implica em fraqueza ou tibieza. A virtude pode ser varonil, viril, como bem o demonstra Voegelin no seu A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA. O governante virtuoso pratica o bem por escolha, mas sempre poderá usar mão da força para combater os oponentes movidos pela ambição das trevas. E esse uso da força é santificado, caracteriza o bom combate.
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