Venezuela. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) devia divulgar boletins
parciais de votos, mas no lugar deles pipocavam declarações de fontes
A expectativa criada pelas pesquisas e pelas declarações dessas fontes
provocou um início de aglomeração de chavistas para comemorar uma vitória
que não viria. A oposição usou a inteligência, uma vez na vida, e não
ofereceu ao presidente Hugo Chávez um grito de "fraude".
Então, e só quando a apuração se aproximou de 90% dos votos, o CNE anunciou
a derrota do "sim". Ato contínuo, Chávez reconheceu seu primeiro revés
eleitoral.
No pronunciamento, Chávez ofereceu um indício, que permanece inexplorado.
Ele disse que "debateu-se com um dilema" nas horas precedentes, aquelas nas
quais os cidadãos ficaram privados das informações previstas.
Depois de tudo dito e feito, os simpatizantes do chavismo - na Venezuela,
em Cuba, na Bolívia e também no Brasil - tocaram tambores de homenagem às
"convicções democráticas" de Chávez, enaltecendo seu gesto de
reconhecimento da derrota.
Esse gesto, que é parte dos usos e costumes das democracias, ganhou
contornos surpreendentes na Venezuela chavista. Por bons motivos: a
"revolução bolivariana"
A derrota chavista começou a ser engendrada pela própria lógica de ferro da
radicalização revolucionária. No início do ano, Chávez proclamou a
constituição de um partido unificado chavista - o Partido Socialista Unido
da Venezuela (PSUV).
O novo partido, que nasce das entranhas do Estado, reuniu assinaturas de
2,5 milhões de aderentes e engajou-se na organização de 900 mil ativistas
em "batalhões".
O termo militar evidencia o significado da máquina política em gestação e
indica o rumo do movimento chavista, que se reveste de nítidas
características do fascismo. Mas a iniciativa corroeu como um ácido a
coalizão chavista, da qual se desprenderam o partido Podemos e líderes
históricos, como o general Raúl Baduel, que desempenhou o papel de
protagonista na repressão ao golpe de Estado de 2002 e ocupou depois o
cargo de ministro da Defesa.
Teodoro Petkoff, ex-guerrilheiro comunista e atual editor do jornal de
oposição TalCual, acerta em cheio quando avalia que a vitória do "não"
inaugura uma nova oposição, liberta dos vícios insanáveis da AD e do Copei,
os partidos tradicionais, e dos dirigentes empresariais do grupo golpista
de Pedro Carmona.
A nova oposição tem muitas faces, entre as quais partidos adventícios e o
movimento estudantil. Mas ela incorpora as dissidências do chavismo que não
aceitaram seguir adiante na via da implementação da ditadura.
Chávez atribuiu seu revés ao elevado índice de abstenção, que alcançou a
marca de 44% dos eleitores. Ele está errado. O chavismo, de fato, perdeu 3
milhões de votos em relação às últimas eleições presidenciais e a oposição
ganhou poucas centenas de milhares de votos.
Mas os que não foram votar, quase todos eleitores tradicionais do
presidente, traduziram na forma da abstenção o fenômeno da divisão da base
social chavista.
Diante de uma campanha oficial que identificou a pátria ao caudilho e
designou o voto "não" como um ato de traição, eles preferiram o silêncio.
Se fossem às urnas, provavelmente completariam a trajetória de ruptura com
o chavismo.
Na hora da vitória, líderes oposicionistas conclamaram o governo a um
processo de "reconciliação nacional".
O programa de reconciliação deveria expressar a vitória da resistência
democrática, que é incompatível com a manutenção dos poderes de exceção
enfeixados por Chávez e sintetizados na Lei Habilitante.
Mas o caudilho não renunciará ao instrumento que lhe permite governar por
decreto, não reabrirá a emissora de TV que empastelou e não desistirá do
sonho do Estado totalitário.
Nas suas palavras, pronunciadas junto com o reconhecimento da derrota, o
projeto ditatorial "continua vivo e não morreu".
Revoluções têm sua própria dinâmica. A "revolução bolivariana" já fabricou
um partido de massas que funciona como aríete do regime chavista.
No desenho da nova Constituição chavista, os "batalhões" do PSUV se
entregariam à formação de conselhos locais de "poder popular" - com a
vocação de substituir os poderes eleitos nos Estados e municípios.
O caudilho está na posição do ciclista, que não tem a opção de parar de
pedalar. Ele precisa alimentar, incessantemente, a máquina política na qual
depositou todas as grandes expectativas de transformação da Venezuela e da
América Latina.
por Demétrio Magnoli
Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. Artigo
publicado em "O Estado de SP":
Postado por MiguelGCF
Editor do Impunidade Vergonha Nacional
Nenhum comentário:
Postar um comentário