O Senado aprofundou o fosso que separa a política da sociedade e isso pode abrir caminho para um governante forte, diz ele
Gabriel Manzano Filho
O fosso entre os políticos e a sociedade brasileira está aumentando de forma perigosa. A absolvição do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), na quarta-feira, é mais um passo na direção da desmoralização do Congresso e, portanto, do fortalecimento do Executivo. Daí para a tentação do bonapartismo - um governo forte e pessoal, de algum líder com grande apoio popular - é um passo. E a classe média, a mais atingida pela crise, tem de se defender desse risco. “Ela precisa ir à luta contra o bonapartismo e buscar também salvação contra um modelo que está transformando sua renda em impostos”, diz o cientista político Amaury de Souza, diretor da MCM Consultoria, no Rio.
Mas o que preocupa na seqüência de escândalos como esse vivido por Renan “é que um dado fundamental não vem aparecendo: que a fonte da corrupção é o Executivo”, diz o professor. “Pois é o Executivo quem distribui cargos, libera emendas e contingencia o Orçamento.”
O Brasil melhorou muito nos últimos 15 anos, avalia Amaury de Souza, “mas não há percepção disso pela classe política”. Nesta entrevista ao Estado, ele faz uma aposta contra os que imaginam que o atual modelo de governo está “formando” uma nova classe média vindas de grupos de baixa renda. Para ele, esses grupos vão aderir rapidamente à geração de computadores e internet “e os valores atualmente defendidos pela classe média, estes sim é que se disseminarão pela chamada opinião popular”.
O que o sr. achou da decisão do Senado de absolver seu presidente?
Ela indica que o fosso entre os políticos e o resto da sociedade está aumentando de forma perigosa. Há um distanciamento que apareceu primeiro na Câmara, e agora no Senado. E para ele há várias causas. Elas vão desde o sistema eleitoral, que já distancia o eleitor do eleito, até uma certa inconsciência, no Congresso, quanto à mudança que já ocorreu na sociedade brasileira. Há uma classe média crescentemente insatisfeita, que vem mostrando isso pelos meios ao seu alcance, num sentimento de crescente indignação.
Mas essa indignação esbarra no sucesso econômico do governo e no enorme prestígio popular do presidente Lula.
A economia vai bem, mas não vai bem para a classe média. A forma como vem ocorrendo o crescimento brasileiro cobra um preço extorsivo da carga tributária. Paga-se como se vivêssemos na Alemanha e temos serviços públicos de Uganda. O governo coleta hoje 35% do PIB, gasta 40% e financia esse déficit com taxas estratosféricas de juros. Essa equação mostra que a economia não está bem para essa fatia de cidadãos.
Eles devem fazer passeatas, divulgar cartazes? Na prática, a classe média não está espremida entre ricos e pobres satisfeitos, cada um por seus motivos?
Acho que ela tem de buscar meios e se mobilizar. Com a internet você não depende de ir para a rua para criar fatores de pressão consideráveis. O que digo parece dramatizado mas é preciso dramatizar, sim. Essa parte da sociedade tem de organizar-se e buscar defesa contra o fato de sua renda disponível estar sendo totalmente transformada em impostos - os quais, por sua vez, vão gerar mais crescimento da máquina e mais corrupção. Hoje a questão da carga tributária é indissociável da questão da participação política. Ou a classe média se engaja politicamente ou logo vai trabalhar dez meses do ano para sustentar o governo.
Pelo que o sr. diz, o fosso acima mencionado é de ordem ética e econômica, não? Ele pode ser desfeito com eleições?
Eu tenho certo medo é de que esse fosso se torne intransponível. Isso me traz à memória uma observação do ex-deputado petista Paulo Delgado (MG): ele dizia que deputado não compra deputado, e hoje se fala de corrupção como se ela fosse restrita ao Congresso.
O que o sr. quer dizer com isso?
Que não é só Congresso. Que a fonte de corrupção é o Executivo. É ele que distribui cargos, para que seus aliados os usem para buscar financiamento das campanhas. É ele que libera emendas em troca de votos. É ele que contingencia o Orçamento, liberando gota a gota os recursos para assuntos de seu interesse. No entanto, em todos esses recentes escândalos, ele não aparece como parte interessada. Procura se descolar cada vez mais do restante do sistema político, caminhando para um bonapartismo de ocasião. Como se dissesse: “Eu pairo acima de toda essa podridão.”
O governo tem conseguido convencer a maioria do eleitorado disso.
É um convencimento parcial. Falta hoje o foco da corrupção no Executivo, dizer ao País que não pode existir corrupção apenas no Congresso. Se o Poder Executivo se põe acima de toda essa podridão, abre caminho para um poder muito ampliado, muito mais perigoso, mais arriscado para o País. Por isso, o que precisamos hoje é de uma mobilização popular para que o Congresso vote as reformas que estão sendo requeridas. Para que se faça a reforma política que interessa aos eleitores, que dê o poder a eles, não aos candidatos. Que faça os políticos caírem na real e não se isolarem do eleitor. E o primeiro passo para isso é o voto distrital.
Não há o risco de uma “opinião pública” mobilizar-se para pressionar o Congresso e despertar outras “opiniões” contrárias?
Sim, e o presidente Lula tem feito discursos diretamente para essa outra “opinião popular”. Mas nada que um recrudescimento da inflação não possa abalar. Veja, em qualquer lugar do mundo há uma enorme diferença na distribuição de informação, conhecimento e politização. Quando falo em opinião pública falo naquele segmento mais estreito, porém altamente atento, informado. Olhe como a população toda reagiu diante da decisão do Supremo Tribunal Federal de transformar em réus os 40 indiciados do mensalão. Há muito mais reservas de luta e de indignação do lado dos eleitores do que supõem o mundo político e o governo.
A questão ética é cara a essa fatia da sociedade mas tem sido “vendida”, por algumas lideranças, como um capricho de minorias. Dá para virar esse jogo?
A ética não tem hoje, no mundo político brasileiro, alguém para carregar sua bandeira. O PT, por exemplo, é uma coisa velha na política brasileira. O que ele fez na quarta-feira, para ajudar Renan, em nada aumenta a distância que ele já tinha do que pregava antes.
O sr. vê uma saída no curto prazo?
Mas o Brasil mudou muito nestes últimos 15 anos, e para melhor. A estrutura do Estado melhorou com Fernando Henrique. A política de redistribuição de Lula foi um sucesso. A escolaridade aumentou, o País exporta mais, vive uma revolução nas comunicações, já somos o quarto maior mercado mundial de computadores. A internet e o celular estão na vida de cada vez mais gente. Minha conclusão: não é das classes populares que virão os valores que vão prevalecer no futuro. Isso significaria a absorção da opinião pública pela popular. Não vai acontecer. Os valores hoje defendidos pela classe média, estes sim é que se disseminarão pela opinião popular.
Por enquanto, essa “nova” classe média parece não partilhar dos modelos da antiga, não?
Há um visível exagero na visão dessa “nova” classe. Há um aumento de consumo que é produzido em parte pela melhoria de níveis de renda, mas forçado por aumentos seguidos do salário mínimo e pela popularização do crédito. Essa fatia, que se identifica com a classe C, é participante, em larga medida, da economia informal. São pequenos comerciantes, autônomos, que têm suficiente dinamismo para fazer o melhor em uma situação que lhes é estruturalmente desfavorável. Se fossem incorporados ao mercado, os impostos os achatariam e o dinamismo acabaria. Se ela é apresentada como modelo da modernidade, precisamos saber que modernidade é essa.
São pessoas mais expostas ao clientelismo político?
Clientelismo é trocar voto por um par de sapatos. Hoje o problema maior é outro e clientelismo já me parece um termo antigo. O que temos no Brasil hoje são grandes grupos de interesses, encastelados na estrutura política e no serviço público. Corrupção não é clientelismo, é algo bem mais moderno e ambicioso.
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