por João Nemo em 13 de fevereiro de 2008
Resumo: Como ninguém parece se impressionar com a facilidade com que o presidente Lula perdoa dívidas por aí afora, ignora rupturas de contrato e ataques contra o patrimônio brasileiro perpetrados por “companheiros” e menos ainda com o generoso fluxo de dinheiro para as ONGs de estimação e o cangaço dos “movimentos sociais”, quem sabe uma tapioca esteja ao nível da compreensão de todos.
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Nossa terra é pródiga em produzir contorcionismos e contorcionistas. Em algumas coisas, isso nos tem trazido sucesso, como no futebol ou na dança, por exemplo – desde que esse atributo esteja associado a algum senso de objetividade. Na maioria dos casos, particularmente quando se trata de contorções outras que não as corporais, acabamos pagando um preço elevado pelas gracinhas.
As mais nocivas das nossas contorções são as que sistematicamente fazemos para não enfrentar questões que nos pareçam difíceis ou conflituosas. No linguajar, escapulimos excessivamente para os eufemismos; na administração, trocamos os problemas de endereço para fugir aos riscos das soluções; em economia, adoramos paliativos e esquecemos que são temporários; na política, transformamos a desejável prudência numa arte de divagação: não gostamos de levar certas coisas às últimas conseqüências, preferindo levá-las a lugar algum; não gostamos de cometer absurdos agudos ou pela porta da frente, mas não nos incomodamos em torná-los crônicos ou introduzi-los sub-repticiamente.
No rosário de escândalos que tem caracterizado este governo, mais uma vez as coisas se aproximaram demais da saúva rainha. Quando isso acontece, o formigueiro fica agitado e agressivo. Da primeira vez – quando o publicitário oficial surpreendeu, em plenário, confessando o inconfessável – houve, por poucos dias, choro e ranger de dentes. Só até perceberem que a oposição, como nos filmes de capa e espada, cavalheirescamente devolveria o florete sem ferir o chefe. Os “traidores” citados nos queixumes feitos na famosa entrevista a Renata Lo Prete evaporaram-se, dando origem ao segundo maior mistério da vida nacional. Não sabemos, até hoje, se Capitu traiu Bentinho e, agora, jamais saberemos quem traiu Lulla. Bom, também não sabemos de onde veio o dinheiro dos “aloprados”. Com isso, o presidente Callamares vence Machado de Assis por 2 a 1.
Os tucanos não perdem o estilo. Querem investigar os gastos feitos com cartão corporativo, mas se propuseram logo a poupar a família real. Receberam o merecido troco: a proposta de uma CPI especializada em história contemporânea, retroagindo até 1998, e a comparação meio capenga com o cartão de débito do governo paulista. De qualquer modo, o suficiente para retomar a tese canalha de que somos todos iguais. Já houve comentarista explicando, pela milionésima vez, que a corrupção é uma doença que atinge a todos os brasileiros indistintamente, e que a culpa, claro, continua sendo dos colonizadores. Como diria o Tavares, aquele personagem pilantra do Chico Anísio: “sou, mas... quem não é?”.
A entrevista coletiva recentemente oferecida pelo trio fantástico, capitaneado pelo novo gerente de crises da corte (o ex-seqüestrador e ex-comentarista isento da Globo, Franklin Martins) foi um desses momentos sublimes que fazem chorar. A dúvida é se devemos chorar de rir ou mesmo de verdade, porque a fé que essa gente demonstra de que somos todos idiotas é algo inabalável. Devem ter uma boa dose de razão, afinal têm sido bem-sucedidos pelos mecanismos que espero ter explicado em artigo anterior.
O ponto alto foi quando o Sr. Jorge Felix explicou as razões pelas quais os gastos da família real e de seus guarda-costas deveriam ser retirados do Portal da Transparência e acobertados por sigilo. Saber a quantidade de comida, por exemplo, poderia permitir calcular o número de homens disponíveis na equipe de segurança. Lembrou que o Presidente Bush gostou muito da carne brasileira quando aqui esteve e divulgar onde ela foi comprada seria uma temeridade. Imagino eu que isso se deva a uma certa analogia com o que aconteceu às Torres Gêmeas. Há quem atribua o sucesso do atentado aos cálculos obtidos graças à formação de Bin Laden em engenharia civil. Não se pode descartar a hipótese de que algum terrorista em atividade tenha uma boa formação em engenharia de alimentos, por exemplo. Enquanto as preocupações do agente Jack Bauer no seriado “24 Horas” estão voltadas para a criptografia nos computadores do sistema de defesa, sofisticados mecanismos de interferência nas comunicações, rastreamentos via satélite e coisas assim, o seu homólogo brasileiro preocupa-se em proteger dados como, por exemplo, a quantidade de picanhas maturadas consumidas. De fato, se estimarmos um consumo médio de 400 gramas per capita, razoável para homens jovens e fortes, será simples saber qual o grau de proteção existente no local. Minha irmã me alerta que é preciso considerar a possível presença de lingüiças, asinhas de frango e assemelhados para obter um cálculo mais preciso. A informação de que houve a substituição urgente do pano verde roto numa mesa de bilhar também é inconveniente, porque parece revelar que pelo menos um dos agentes é um tanto descoordenado.
A cortina de fumaça produzida pelo “gabinete de crise” é até singela na sua concepção: por um lado, blindar e ocultar, com o pretexto de segurança, as despesas próximas do presidente Callamares; por outro, embaralhar ao máximo o processo de apuração de irregularidades, alongando o período, dispersando o foco e envolvendo os tucanos pelo uso comum do recurso “cartão”. A maioria dos adversários, que já não primam pela valentia, se intimida. Ajuda, também, a evitar perguntas como: por que despesas pessoais devem ser cobertas por cartões corporativos da república?
O problema não é o método de pagamento, coisa até prática para pequenos gastos, mas sim o uso e abuso por mais de onze mil funcionários, incluídos ministros, primeira-dama, filhos e anexos. É destinado ao pagamento de despesas inesperadas e urgentes? Faz sentido: afinal, para muita gente, esse governo é uma caixa de surpresas. O último ano de FHC (2002) contabilizou 3 milhões e seiscentos mil nesse método de pagamento; o primeiro ano de Callamares (2003) já atingiu 8 milhões e setecentos mil. Depois, foi tomando mais gosto e fechou 2007 com 78 milhões. O grande achado foi apontar o dedo para os 108 milhões do governo de São Paulo. Falta mostrar que houve abusos semelhantes já que, neste caso, não são usados por secretários ou familiares, mas certamente haverá despesas bizarras a apontar para fazer o contraponto.
A discussão desse assunto ainda vai se desdobrar sob diversas formas, mas o que seria mais importante e mais significativo talvez não receba qualquer destaque. Além da já citada convicção a respeito da nossa inesgotável capacidade para ouvir tolices e passar por patetas, além do prenúncio do que vem por aí pela maior agressividade e proatividade na reação, o que mais impressiona é o grau de intimidade banal a que se chegou com o dinheiro público. Quer uma tapioca? Toma lá o cartão. Um Chicabon? Uma água de coco? Lá vai o cartão da república. Ao ridicularizar os oito reais da tapioca, o Ministro Paulo Bernardo talvez tenha, sem querer, dado a dimensão verdadeira da coisa. Mais do que quanto e como se gasta, esses fatos deveriam preocupar como indicador que são de uma mentalidade. Ao contrário da teoria tolamente cultivada de que os grão-petralhas são anjos decaídos graças às tentações do capitalismo, eles estão exercendo a sua mais pura vocação quando se refestelam entre os mamilos do poder. É a essência do estilo estatizante e revolucionário e, sempre que possível, manifestação da melhor tradição sindicalista brasileira.
O neopatrimonialismo petista chegou ao extremo da displicência e da promiscuidade com o dinheiro público. Como ninguém parece se impressionar com a liberalidade do apedeuta ao perdoar dívidas por aí afora, nem ao ignorar rupturas de contrato e ataques contra o patrimônio brasileiro – desde que perpetrados por “companheiros” – e menos ainda com o generoso fluxo de dinheiro para as ONGs de estimação e o cangaço dos “movimentos sociais”, quem sabe uma tapioca esteja ao nível da compreensão de todos.
Postado por MiguelGCF
Editor do Impunidade Vergonha Nacional
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