A VERDADE DO DIREITO NATURAL
Fonte: http://www.nivaldoc
1 - (Em 23/08/2004)
A recente discussão que empreendi sobre o fundamento cristão da ciência política ocidental, que me levou a discutir a questão da moral atéia, pode parecer ao leitor menos avisado que é essa uma coisa menor, um mero diletantismo. Nada mais falso, pois está aqui a origem dos (falsos) critérios de verdade e dos maiores erros. A discussão remete-nos à questão do direito natural. A investigação sobre a existência de um direito natural remonta pelo menos aos tempos de Sócrates, na Grécia, e aos profetas, em Israel. Durante cerca de dois mil e quinhentos anos pareceu ser uma obviedade para os homens de ciência e de Estado a busca da sintonia entre o direito natural – em potência – e a ação prática dos homens de poder. Em outras palavras, é sabedoria antiga buscar a raiz transcendente do poder. Apenas nos últimos duzentos ou trezentos anos é que a hipertrofia da razão atéia colocou como critério de verdade exclusivamente a razão autônoma, como se pudéssemos ter na imanência as respostas para as coisas transcendentais.
Podemos dizer que discutir a questão do direito natural x o direito positivo é discutir a própria modernidade enquanto tal. É nisso em que consiste ser moderno, em repudiar as verdades sagradas que sempre foram óbvias para os sábios de todos os tempos, verdades que se tornaram obscuras para os engenheiros da alma humana de todos os matizes, desde os liberais ateus até os socialistas e comunistas, todos comungando da crença de que aqueles que tinham (têm) fé eram (são) apenas uns tolos auto-enganados. O desprezo dos ateus para com os teístas só é proporcional ao seu próprio equívoco.
O resultado desse descolamento da investigação da fonte do direito, do natural para o positivo, que teve na figura de Hegel o seu momento culminante, redundou na teratologia do Estado moderno. A fonte da norma jurídica passou a ser a vontade geral, a gabolice dos inflamados do dia, a transformação da ignorância populista na fábrica de leis que têm tiranizado os homens, subjugando-os ao Estado. O Parlamento deixou de ser o contraponto ao Príncipe, é ele próprio o Príncipe, tornando-se a fonte do desrespeito à própria lei, posto que o descolamento da norma jurídica da sua legitimidade transcendente induziu os aventureiros com vocação para tiranos a fazerem do Estado o seu laboratório de experimentos e da conquista do Estado a maldição violenta sobre os seus contemporâneos. Está aí a origem da violência política como a conhecemos, até o limite das ações terroristas. As modernas democracias levaram esse modo de ver as coisas ao ápice, transformando os preconceitos dos vulgos e os vícios privados em normas jurídicas de validade geral. Os modernos conseguiram a proeza de fundir Leviatã e Beemoth e isso só poderia redundar no banho de sangue que tem sido a rotina desde pelo menos a Revolução Francesa.
É por isso que podemos falar, como o fez recentemente o filósofo Olavo de Carvalho, na existência de um Imbecil Normativo. Como sabemos, entes coletivos como o Estado são a própria expressão da Sombra humana, a encarnação do imbecil arquetípico, da ausência de inteligência e de discernimento típica das multidões. A expressão sintética Imbecil Normativo diz muito do que é o ato legislativo nesses tempos bicudos
A discussão do conceito de direito natural tem, portanto, três eixos:
1- A tradição grega, resumida na obra Política, de Aristóteles;
2- A tradição judaico-cristã
3- Os liberais modernos, que têm em Locke talvez o seu maior representante.
Nos próximos textos pretendo aprofundar o assunto, trazendo para o leitor os pontos de vista de autores como Leo Strauss e Eric Voegelin, filósofos que resistiram ao emburrecimento geral da modernidade e mantiveram acesa a chama da tradição no plano filosófico e jurídico.
2 - (Em 27/08/2004)
O que é direito natural? É um conceito filosófico preciso, que remonta à antiguidade clássica. A palavra natural aqui deve ser entendida no sentido aristotélico e se opõe ao convencionalismo do direito, à tradição errática tão variável de povo para povo. Portanto, quando alguns detratores da tese insinuam que os primitivos deveriam ter manifestação evidente desse direito por supostamente viverem em estado natural, estão na verdade fazendo sofisma. O direito natural pressupõe a Polis, a maturidade filosófica, a civilização. Nada tem a ver com formas anteriores de sociedade. É o esplendor da razão.
O direito é natural no sentido daquilo que não pode ser criado pelo homem, procede da natureza humana e precisa ser investigado. A filosofia política tem como objeto a descoberta do seu conteúdo. Então justiça pressupõe a consciência do direito natural, que é o fundamento e a forma mais evoluída de se fazer o ordenamento jurídico da sociedade. Isso só pode ocorrer com a vida em sociedade, com a fundação da Polis. O direito positivo deveria espelhar essa consciência superior dos filósofos, sendo a única maneira de se legitimar a ordem em seus fundamentos últimos, transcendentes.
Esse conceito clássico de direito natural era desconhecido da tradição judaica, até que os filósofos cristãos viessem a fazer a síntese com a tradição grega. Se tomarmos os Dez Mandamentos, por exemplo, um dos pontos culminantes do Pentateuco, veremos que há ali a ética das relações interpessoais e com Deus, mas de forma nenhuma remetem à relação entre o indivíduo e o Estado. Há a notável ausência do elemento político, tão caro aos filósofos gregos. A questão da Revelação ignora os Principados e as Forças. Só com Agostinho e, depois, com Tomás de Aquino, a administração do Reino desse Mundo foi objeto de reflexão, firmando-se uma teologia civil.
Podemos dizer que na modernidade a lei deixou de ser um instrumento de justiça para ser mero instrumento de administração do Estado. Essa instrumentalidade obscureceu a sua razão de ser, que é espelhar a administração da justiça respeitando-
Leo Strauss, no seu monumental livro Natural Right and History, mostra essa tendência à exaustão. Atribui, por exemplo, o surgimento do nazismo ao abandono desse conceito filosófico. Insiste que a tradição clássica se opõe ao historicismo, corrente filosófica que entende que o direito varia no tempo e no espaço, não havendo um elemento natural que possa lhe dar uma substância permanente. É o relativismo jurídico, que irá fundamentar o arbítrio legislativo dos Estados modernos. Está aqui a fonte de todas as violências dos Estados nacionais, seja contra os seus súditos, seja contra os seus adversários. Como corolário, o positivismo jurídico impõe-se enquanto solução prática e enquanto instrumento do relativismo, vale dizer, do totalitarismo estatal.
Não preciso dizer que o historicismo encampa o hegelianismo, o positivismo, o marxismo e todas as suas variantes.
Strauss insiste em dizer que a tradição clássica admite como fato que a verdade enquanto tal é acessível ao homem como homem. Os historicistas negam essa tese, afirmando que a verdade depende do momento histórico vivido. O abandono da tradição clássica é o ponto de partida que irá desaguar no relativismo moral, a fonte de todas as misérias políticas.
3 - (Em 30/08/2004)
O que é modernidade? Para os autores que estamos lidando, nomeadamente Leo Strauss e Eric Voegelin, modernidade é a ruptura com a forma clássica e cristã de abordar a ciência política e o poder. Ela, a modernidade, teve uma longa formação, desde os fins da Idade Média, mas terá em Hegel o seu maior inspirador filosófico e em Nietzsche o apogeu de sua realização. Modernidade é a declaração morte de Deus, o abandono da busca da raiz transcendente da existência como fundamento último da ordem histórica e da ordem da alma. Em seu lugar, são postos o niilismo, o historicismo, o relativismo e o positivismo que irão pautar a produção das ciências sociais nos últimos dois séculos. Fundamentarão todos os movimentos revolucionários que propõem a redenção pela economia e pela política, sendo os seus maiores tributários os coletivistas de todas as naturezas, especialmente os comunistas e os nazistas. O materialismo liberal também é filho do movimento gnóstico, formando a sua ala direita.
É por isso que na modernidade a idéia de um direito natural desaparece, ficando em seu lugar o positivismo jurídico puro. A ética filosófica é posta de lado. O livro de Maquiavel, O Príncipe, é um dos primeiros momentos em que a teorização da política separa completamente os meios dos fins almejados. Como se sabe, o florentino aconselhava, para a obtenção do fim último da paz e da boa governança, a prática do mal instrumental. Nenhum dos grandes filósofos gregos ou cristãos poderia endossar tamanha calamidade moral. A obra de Maquiavel é a grande precursora da modernidade.
Voegelin, no seu monumental A Nova Ciência da Política, afirma o caráter gnóstico da modernidade. A palavra gnóstico no livro tem um sentido técnico, diferente do sentido histórico associado ao termo. Por gnose entendem-se os movimentos religiosos, políticos e filosóficos que abandonam e idéia da escatologia cristã, proclamando a possibilidade da salvação pelos meios materiais, ainda nesse mundo. É a plena ruptura com a tradição grego-judaico-
Por isso Voegelin enxerga o gnosticismo moderno como um tumor na sociedade ocidental e não um mero retorno ao paganismo. A modernidade é tida como uma espécie de câncer, uma doença da alma que precisa ser curada. A analogia procede, mas não posso deixar de consignar que há muito de retorno ao paganismo, sim. Ou, para dizer em outros termos, a doença ocidental assemelha-se ao paganismo mais primitivo.
O grande contributo dos filósofos cristãos, especialmente Santo Agostinho, foi ter separado a Cidade de Deus da Cidade dos homens. Em outras palavras, desdivinizado o mundo, o que equivale a desdivinizar a economia e a política. Os gnósticos fazem o caminho inverso, tornando a imanentização radical o seu propósito.
Para Voegelin, as grandes calamidades do século XX só podem ser compreendidas por esse processo de análise. Gnosticismo é o suicídio da alma, cuja manifestação na política se transforma na destruição pura e simples, não apenas pelas guerras, mas também pela eclosão da violência por toda parte. Como toda doença, pode ter cura, mas para isso seria necessário buscar o remédio adequado, qual seja, um retorno aos valores clássicos e judaico-cristã
4 - (Em 02/09/2004)
[Meu caro leitor, preciso dizer duas palavras antes de voltar ao tema. Em primeiro lugar, que lhe sou grato pela oportunidade de “pensar” escrevendo sobre um tema tão fundamental, que me obrigou a retornar às antigas leituras, que aproveitei pouco no passado. Em segundo lugar, dizer aos meus amigos liberais ateus que sou-lhes especialmente grato pela polêmica travada. Sem ela, não teria investido tantas horas de leitura em livros os mais difíceis e eruditos.]
Tanto Voegelin como Strauss dedicam boa parte de sua exposição às obras de Max Weber e de Hobbes. Weber é um autor que deixarei de lado por não ser o foco do meu interesse no momento, mas é preciso ser dito que ele é o apogeu do positivismo aplicado às ciências sociais e sua obra é duramente criticada por ambos os autores. Hobbes, por sua vez, é um divisor de águas entre o conceito de direito natural clássico e o novo inventado por ele e por autores da época, como Locke. A expressão direito natural é a mesma, mas ambas significam coisas completamente antagônicas. Melhor seria se se chamasse simplesmente de direito legal ou algo equivalente. O novo conceito é a própria modernidade ela mesma, que vai-se abrindo até atingir todos os níveis da vida política do Ocidente, hoje compreendendo o mundo inteiro. Hobbes leva as teses de Maquiavel ao seu limite de radicalidade e pode, com justeza, ter o título de maior dos Iluministas nesse campo.
Voegelin tem uma visão mais positiva da obra de Hobbes, talvez porque seu livro tenha sido escrito no começo dos anos cinqüenta. Nesse turbilhão que são os tempos modernos o lapso de cinqüenta anos que nos separa de sua publicação representa uma eternidade. Naquele tempo ele podia dizer que ela, a modernidade, era um tumor dentro da tradição, que pela força se mantinha de pé, um organismo vivo e pulsante, ainda que doente. Hoje vemos que a metástase tomou conta de tudo e a desgraça se esparramou de forma irreversível. A tradição é um defunto insepulto nos tempos de hoje. A expressão “Deus está morto” é uma (falsa) verdade para a grande maioria.
Vista em retrospectiva, a obra de Hobbes inaugura o positivismo jurídico utilizando a mesma expressão dos antigos mestres. É próprio da modernidade prostituir os termos, criando uma grande confusão verbal que, sozinha, exige um grande esforço para distinguir. Hobbes não usa por acaso a expressão Leviatã: propõe o absolutismo político, depositando nas mãos do Estado o poder supremo sobre as pessoas tornadas uma massa de indivíduos fragmentados, algo que pelo menos durante um milênio tinha desaparecido. Voegelin vê uma necessidade nessa “teologia” civil, pois a Inglaterra se debatia em guerra civil para ver qual dos grupos religiosos impunha o seu conjunto de valores. Ao eleger o Estado laico como soberano absoluto, um legislador implacável, Hobbes faz da lei positiva o disciplinador da comunidade. Acabou-se a guerra civil e instituíram-se as bases do liberalismo, mas sacrificou-se no processo todo o critério de verdade da alma que presidia a ação dos governantes e governados.
Voegelin lembra que Hobbes substituiu o princípio do “summum bonum” greco-judaico-
Hobbes propõe que o Estado pratique o “summum malum” porque acha que o maior de todos os valores é o apego a vida e o respectivo medo da morte violenta. Em um mundo que emergia da Idade Média e que tinha a tradição com muita força, talvez tenha sido um instrumento de combate aos rachas da cristandade. Depois de três séculos de progressivo abandono dos valores tradicionais, a eficácia perdeu-se e vemos que a tese principal de Hobbes é uma falácia, pelo menos para algumas minorias bem determinadas. Como compreender o auto-sacrifício de homens-bomba, mulheres-bomba e até crianças-bomba que se tornou rotina em todas as partes do mundo? Como compreender o 11 de setembro? Como compreender o que está a acontecer na Rússia e
Quando Nietzsche, no Zaratustra, escreveu sobre o Novo Ídolo, o novo deus que emerge na modernidade atéia, só errou ao chamá-lo de “novo”. É mais velho do que o Diabo, é ele mesmo o Diabo.
5 - (Em 05/09/2004)
“No princípio era a ação”.
Goethe
Os acontecimentos da Rússia foram chocantes. É a prova viva da falha da teoria hobbesiana. O medo da morte não é o principal motor da obediência política dos homens e não garante a paz social e o fim das guerras civis. E é falso pensar que esse destemor diante da morte, observado nos terroristas que agiram na Rússia, é um fenômeno exclusivo do milenarismo muçulmano: no século XX o Ocidente cristão, tomado pelo mesmíssimo milenarismo, marchou para a morte qual um rebanho de gado. As Grandes Guerras não apenas mataram o que se supunha ser o inimigo, incluindo suas mulheres e crianças; era também o suicídio de toda a juventude masculina das nações guerreiras. As guerras revolucionárias da mesma forma: foi um grande morticínio em nome de nada.
A declaração da morte de Deus levou à morte dos homens.
Da mesma natureza é a delinqüência anônima que ceifa a vida das pessoas e lota as prisões do mundo, a despeito do formidável aparato repressivo dos Estados modernos. É a prova de que morrer não impõe terror suficiente para sustar as ações contra a lei e o poder estabelecido. A ação seduz mais que a existência.
Não deixa de ser paradoxal que a renúncia ao Além, inerente ao materialismo ateu, leve os homens a um desejo de antecipação da sua chegada. A dessacralizaçã
Uma das notáveis observações de Strauss é que Hobbes não inventou nada de novo, apenas copiou a tradição grega, a torta, vinda dos sofistas e especialmente de Epicuro, que coloca a investigação da filosofia política baseada na doutrina do hedonismo, da busca do prazer. A tese é radicalmente oposta à da boa tradição greco-judaico-
A coincidência do surgimento do ateísmo político com a explosão das ciências físicas e da tecnologia aplicada à produção coloca a questão de saber se foi coincidência ou se houve uma relação de causa e efeito entre os fenêmenos. Penso que o capitalismo iria eclodir de qualquer maneira, mas as instituições forjadas pelo liberalismo aceleraram o passo, ao preço do abandono do que era mais sagrado. O direito natural como se conhecia foi sepultado pelo positivismo jurídico. Foi a boa ética da civilização ocidental, todavia, que gerou as condições gerais para que o processo de trocas e a liberdade pessoal e de empreendimento pudessem surgir.
Podemos ver que a continuidade do processo de desenvolvimento material tem a sua barreira precisamente na impossibilidade de convivência pacífica das pessoas. Seja a violência de origem política, seja a violência cotidiana e fragmentada das grandes cidades, ambas inviabilizam o progresso social, tornando a vida prática um sofrimento e um perigo. Não há fórmula para superá-las senão fazendo retornar a tradição. Materialismo ateu é sinônimo de barbárie.
A visão de Hobbes destina ao Estado não a promoção ou a produção da virtude, mas a salvaguarda do que ele considerava o mais supremo, o direito à vida. É nisso que consiste a sua definição de direito natural. Assim, a justiça no sentido tradicional dá lugar à simples obrigação de cumprimento de contratos. O problema é que o indivíduo, mal formado ou deformado pela quebra da tradição, sente-se cada vez menos compelido a cumprir o contrato social e cada vez menos teme a mão tenebrosa do Estado. Contratos sempre foram cumpridos não por mera força da lei, mas porque os indivíduos assim o desejavam. Antes da lei os contratos já eram cumpridos. Quando a simples lei formal é o que resta como única força à sua efetividade, e não a escolha do indivíduo, a tendência é que não mais sejam cumpridos, fragilizando totalmente as relações sociais. O reino de Leviatã tende para a anomia e para a violência desembestada.
6 - (Em 11/09/2004)
“Pensar é fixar-se em alguma coisa do que se vê.”
“O saber é uma fonte que unicamente pulsa na solidão.”
Ortega e Gasset
A data de hoje é notável. Nela faço uma anticomemoraçã
Mas a violência política continua, matando muito mais do que todas as fomes e pestes de que temos notícias. A ignorância, no caso, é das coisas do espírito. O homem como lobo do homem é a realidade dos nossos dias, assim como no passado. Esse é o enigma da filosofia política e investigá-lo remete-nos diretamente à questão do direito natural. Quem é superior, o Bem ou o Mal? Quem é mais eficaz? A tradição que vem de Aristóteles e dos profetas ensina-nos que o Bem é superior ao Mal; a que vem de Epicuro, Hobbes e Marx asseguram-nos o contrário. Separar a verdade do erro é distinguir entre realidade e fantasia. Entendo que a boa tradição é a verdade enquanto tal e o Mal que age no mundo fá-lo com eficácia precisamente porque a humanidade não consegue fixar-se devidamente naquilo que vê. Não há olhos para ver, os homens ficam assim impedidos de pensar, como nos alertou Ortega e Gasset no seu precioso opúsculo Origem e Epílogo da Filosofia, cuja tradução adquiri em um sebo, editada em 1963 no Brasil pela editora Livro Ibero-Americano.
Qualquer compêndio de História Universal ensina-nos que na origem dos Impérios e dos Estados é sempre um ato de maldade, uma conquista. Será sempre um assassínio, uma guerra, uma invasão territorial o seu marco inaugural. Nosso próprio País é obra da espada conquistadora, mais do que qualquer outra coisa. Então na origem a sociedade política é formada pela violência, que paradoxalmente é a geradora da paz. É essa a raiz satânica do poder político. No entanto, sem a ordem gerada pelo uso da força primeva não haveria a Polis, nem a civilização e nem o filosofar. A conquista do Bem vem depois, com a civilização, com a Revelação: o Bem é o supremo ato de consciência individual, inicialmente, formando o germe para a criação de instituições políticas que estejam de acordo com a natureza humana. É o direito natural como o herdamos da boa tradição e que caiu em desuso progressivamente desde o Iluminismo.
As palavras de Cristo diante de Pilatos, conforme registrado no Evangelho de João (19,11), colocam o problema da origem transcendente do poder: “Não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto; por isso quem a ti me entregou tem maior pecado”. O drama da Paixão é o duelo entre a consciência individual, de um lado, o Deus Vivo encarando em Cristo, e os Principados e as Forças, do outro, representados pelo Império Romano e pelo poder político-religioso das autoridades judaicas. O poder mundano e a verdade colocam-se
Essa passagem é útil para nos ensinar que a descoberta do Bem na política só pode acontecer de dentro para fora do indivíduo, pela ampliação da consciência, e não de fora para dentro, como queria Hobbes, pelo uso do terror do Estado. É esse seu erro fundamental. O que o 11 de setembro nos ensina é isso: ao terror os homens respondem com mais terror e morrer nada significa. Estabelecer a paz social demanda um processo de educação que é ele mesmo o resgate de nossa tradição. Especialmente daqueles homens que são os responsáveis pelos negócios do Estado, mas não apenas: os governados precisam saber da boa tradição e que seus governantes se pautam por ela.
Como se vê, discutir o Estado e o poder é discutir também seus fundamentos últimos, que estão na filosofia e na religião. Quantos de nossos governantes, hoje, sabem disso? Muito poucos. A ignorância plena está a nos governar, o que significa um enorme e explosivo potencial de violência. Resgatar o direito natural é também resgatar o estudo e a cultura da ciência política estagnada e esquecida há três séculos. É tarefa que poderá levar gerações.
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