Liberdade de imprensa é musa que os governantes, mesmo os que se julgam altamente democratas, cortejam, mas estão longe de apreciar. A maioria gostaria de vê-la pelas costas. De fato, não é fácil admiti-la. Afinal, a imprensa está longe de ser um ente perfeito.
Erra – e erra muito. Mas nenhum dos danos que eventualmente ocasiona se compara ao dano maior de sua supressão – ou limitação por meio de censura. Os danos decorrentes do exercício da liberdade de imprensa – injúria, calúnia e difamação – estão capitulados no Código Penal, e estabelecem punições que vão de multa a prisão.
O mau jornalismo deve – precisa – ser punido, nos termos da lei, até mesmo para fortalecer o bom jornalismo. O preâmbulo vem a propósito de expediente recente, perpetrado pela Igreja Universal do Reino de Deus, contra um jornal e uma jornalista.
Contrariada por se sentir ofendida por reportagem da Folha de S.Paulo, assinada pela repórter Elvira Lobato, pôs em cena uma estratégia que, na linguagem judicial, é conhecida por “litigância de má fé”. Ou seja, aciona-se a Justiça não em busca de justiça, mas para intimidar ou estabelecer pressão econômica irresistível.
Foi o caso. Diante da referida matéria, os dirigentes da Igreja Universal orientaram adeptos em todo o país para que abrissem processo simultâneos na Justiça, de diversos pontos do país, contra o jornal e a jornalista. Ao todos, mais de 150.
A evidência da litigância de má fé começa nos termos das petições, que se repetem literalmente em cada um dos processos. Toda a imprensa se levantou, mobilizando entidades da sociedade civil, como OAB, CNBB e outras grifes defensoras do politicamente correto. Estava em cena uma modalidade oblíqua de censura.
Tudo bem – exceto por um detalhe: trata-se de reação tardia a uma prática que já estava em curso, já fizera vítimas, mas não gerara a mesma reação. Ou por outra, nenhuma reação.
E aí há um dado gravíssimo, nem sempre percebido como tal, que é a censura à imprensa gerada pela própria imprensa. A censura ideológica. Há bem mais tempo que as ações simultâneas da Igreja Universal contra Elvira Lobato e a Folha, o colunista da revista Veja, Diogo Mainardi, tem sido alvo de atos idênticos, perpetrados por personagens ligados ao governo federal e a seu partido.
Mainardi, porém, é visto como ideologicamente contaminado. Assume posições tidas como ultraconservadoras (não cabe aqui discuti-las), e faz críticas ácidas à própria mídia, o que o torna um colecionador de desafetos em seu próprio meio profissional.
Ocorre que liberdade de imprensa não é um bem ideológico. Não é de direita ou de esquerda, nem pode estar submissa a idiossincrasias. É plural e impessoal – ou não é. Goste-se ou não de quem esteja sendo constrangido pelo exercício da profissão, é o princípio que está em jogo. Se houver excessos por parte do jornalista, há os remédios legais e o modo honesto de acioná-los.
O presidente Lula, ao se manifestar a respeito da ação da Igreja Universal contra Elvira e a Folha, tratou o caso como se não estivesse submetido a litigância de má fé. Disse que a democracia é assim: se a pessoa ou instituição se sente ofendida, vai à Justiça. É verdade – mas não é o caso, e o presidente com certeza sabe disso.
Ele e seu partido, que quiseram criar um certo Conselho Federal de Jornalismo, na tentativa de estabelecer controle estatal sobre a atividade, incluem-se na cota dos que cortejam a musa Imprensa, mas estão longe de apreciá-la ou de a quererem por perto.
Comento
Ruy Fabiano vai ao ponto certo: quando Diogo foi vítima do mesmo procedimento, poucos protestaram. Se, contra Diogo, pode, por que não contra os demais?
Reitero: recorrer à Justiça é uma faculdade sagrada das democracias. Devemos fazê-lo, quando é o caso, para restaurar um direito agredido. Eu o farei quando julgar necessário. Os indivíduos devem fazê-lo. Os próprios veículos de comunicação podem ser vítimas de agressões industriadas, feitas por lobistas disfarçados de jornalistas, e a Justiça é o caminho. Mas sem chicana.
A questão em debate é outra: a manipulação de dispositivos legais para punir oponentes antes mesmo de qualquer decisão legal. Foi o que se tentou fazer com o Diogo e com a VEJA; é o que se tenta fazer com Elvira Lobato e com a Folha. VEJA, felizmente, levantou a voz contra a chicana na edição desta semana. Eu tenho tratado do assunto aqui, como sabem, desde o primeiro dia.
Ruy Fabiano está certo: nesse caso, não há ideologia. Ele aponta: no caso de Diogo, o silêncio de alguns setores se devia a um sentimento mais ou menos assim: “Esse cara mereceu; ele é muito conservador”.
Ora, silenciar diante da mobilização do aparato legal para tentar atingir alguém porque não se gosta do seu pensamento corresponde a abrir as portas do inferno.Voltamos ao texto tantas vezes lembrando aqui do pastor protestante Martin Niemöller (1892-1984):
“Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram. Já não havia mais ninguém para reclamar.”
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