Marcos Nobre, articulista da Folha, tocou ontem num bom tema em seu texto, ainda que pelo avesso e com uma informação falsa. Ele conclamava a turma que se opõe à CPMF — e que organizava um show — a admitir que o movimento é, sim, contra o governo e conta com o apoio das oposições. Escreveu: “É óbvio que será apoiado por partidos e forças de oposição. Qual é o problema de dizer isso em alto e bom som?” A informação falsa, comprovada, ademais, na Folha desta quarta: o PSDB prepara uma proposta alternativa para a contribuição. O avesso: Nobre não tentou saber por que os movimentos de protesto se apressam em dizer que não são contra o governo. Ele se limita a criticá-los por sua, sei lá, covardia, ambigüidade ou falta de clareza.
Falemos um pouco do show — que não contou com o apoio das oposições — e de seus organizadores. É gente nova nessa história de protesto, o que só evidencia a pouca experiência política da burguesia brasileira, sempre tão dependente do estado e sua íntima. As lideranças, se é que serão, estão em formação. Qualquer especialista em manifestação pública — gente que já organizou ao menos uma... — diria que apostar na presença de 2 milhões de pessoas num dia útil era meta ambiciosa demais. Regra número um: não se faz previsão nenhuma; o que houver é lucro. Regra número dois: não se diz, de antemão, quais palavras de ordem serão ou não aceitáveis — o ato é contra a CPMF? Então é. Ponto final. Regra número três: define-se quem fala com a imprensa. Regra número quatro: não se admite jamais que a manifestação foi malsucedida. No auge, o ato teria reunido 15 mil pessoas. Ainda que fosse 20 vezes isso — 300 mil —, sempre se lembraria dos 2 milhões. Aos jovens empreendedores da Fiesp, uma informação: nem os comícios das diretas reuniram tanta gente. Hoje em dia, duvida-se que o maior deles tenha chegado a um milhão. Os números eram inflados por organizadores e pela própria imprensa, que entrou na torcida.
Assim, vê-se que o que se tenta vender como um possível núcleo de conspiração contra o governo Lula não passa de organização amadora — e creiam: falo isso sem qualquer ponta de crítica ou de ironia. Talvez eu até julgue positivo que assim seja. Vamos ver.
Voltemos ao que está lá no primeiro parágrafo: por que movimentos de protesto ou, como dizer?, de inconformismo com o statu quo fazem questão de deixar claro que não protestam contra o governo? Repondo lembrando o título do artigo de Nobre: “Cansei 2”, uma alusão ao mais demonizado movimento que já houve no país, visto como ato reacionário de ricos e desocupados, que estariam inconformados com o caráter popular do governo Lula. Quase ao mesmo tempo, manifestações contra Lula pipocaram em várias cidades, o Movimento Grande Vaia. Foi tachado imediatamente de golpista.
Um cientista social ou filósofo, de esquerda ou não, petista ou não, tem a obrigação intelectual de constatar que isso é novo no Brasil. Desde o movimento pela Anistia, a imprensa (a maior parte ao menos) e os tais movimentos sociais estão sempre endossando protestos. Se era contra o governo, já nasciam justos. No fim do Regime Militar, a causa era a democracia; nos governos Sarney e Collor, protestava-se contra a corrupção; no governo FHC, contra o neoliberalismo. No governo Lula... Epa!!! Protestar no governo Lula? Contra o quê?
As vozes autorizadas do protesto chegaram ao poder. Vocês se lembram de algum grande ato contra o escândalo do mensalão? Não houve. Os ditos “movimentos sociais” sempre foram núcleos de militância da esquerda, depois capturados pelo PT, que domina boa parte do movimento sindical. O que não está sob a sua órbita foi atraído pelo lulismo. O mesmo vale para as organizações estudantis. Ah, sim: pela primeira vez desde o fim da ditadura, há núcleos verdadeiramente governistas, militantes mesmo, na imprensa.
Não me lembro, desde que comecei a me ocupar de política, de assistir à clara e aberta “criminalização” do protesto. Uma “criminalização” diferente: não se acusam os manifestantes de transgredir a lei — só faltava isso —, mas de, quem diria que se chegaria a tanto?, crime ideológico. Opor-se ao governo é quase como confessar que você é dono de um Rolex ou, sabe-se lá, sonha ter um. Ocupar o espaço público para protestar requer certas precondições e a adesão a um ideário de algum modo governista.
Então...
Talvez esperem que eu diga que é um erro não “assumir” o caráter eventualmente antigovernista dos protestos. Ao contrário. O melhor que os descontentes têm a fazer é não emprestar um caráter antipetista ou antilulista às manifestações, ainda que muita gente, entre os poucos que botam a boca no trombone, preferisse que assim fosse. Eu diria que isso seria o normal e o corriqueiro. Mas os tempos são menos normais e corriqueiros do que parecem. A força do movimento de contestação ao statu quo, curiosamente, pode estar é na sua fragmentação — em ações e grupos que não podem ser capturadas pelo governismo e pelos modernos instrumentos de “repressão”: as antigas organizações de caráter sindical e movimentos sociais. Estas estão empenhadas, hoje, em aplaudir o governo.
Assim, o melhor mesmo é não se expor à fúria dos reacionários do oficialismo. Lula não completou nem um ano de seu segundo mandato. As eleições de 2010 estão muito longe, e a luta contra o petismo é uma maratona, não uma corrida de 100 metros. E cumpre, evidentemente, que não se façam bobagens como prometer levar milhares ou milhões às ruas.
Não precisa ir muito longe. Sabem onde está entricheirada boa parte da resistência ao lulo-petismo? Aqui mesmo, na Internet, como vocês estão cansados de saber.
Por Reinaldo Azevedo
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