O artista virou senha de liberdade. Demonstrou que a censura não atrapalha aPor CARLOS HEITOR CONY
inteligência
PRIMEIRA QUESTÃO: Verdi foi um gênio? Até hoje, alguns musicólogos negam-lhe
não apenas a genialidade mas o valor. São OS mesmos que não aceitam Chopin e
Tchaikovsky. Não perdoam a facilidade dos noturnos, dos caprichos e das
árias que fazem parte dos realejos que se tocam no mundo. Mas Chopin
escreveu o "Prelúdio nº 28", Tchaikovsky deixou sua "Quinta sinfonia" e
Verdi, afinal, escreveu "Othelo" e "Falstaff".
Verdi tinha 19 anos, era alto, cabeludo. Fez uma prova no Conservatório de
Milão e foi reprovado: tocava piano muito mal e seu físico não ajudou. Um
dos examinadores cismou: Verdi nem sabia colocar as mãos em cima do teclado.
Anos mais tarde, depois DA dominação austríaca, o conservatório desejou ter
o Nome de um italiano ilustre e solicitou ao maestro que autorizasse a
existência legal do "Conservatório Verdi", de Milão. O compositor respondeu:
"Não me quiseram quando jovem, não me terão velho". Nesse meio tempo, entre
outras coisas, ele havia escrito aquela terrível ária do "Rigoleto": "Is
vendetta, tremenda vendetta".
Bem, a solução para OS refugados era essa mesmo: Verdi se transformou no
rapaz amargo e, como continuava a gostar de música, o remédio era aceitar a
direção DA "furiosa" de Busseto, uma banda como outra qualquer, cujo forte
eram OS dobrados militares de praxe e circunstância. Uma tarde, regeu Haydn
diante de entendidos e recebeu a incumbência: fazer uma ópera. Verdi meteu
OS peitos e produziu "Orbeto", "Conte di San Bonifacio".
A municipalidade de Busseto impôs o trabalho ao Scala de Milão. A título de
incentivo, a ópera foi representada numa festa beneficente. Era uma caridade
do mundo oficial DA música ao jovem compositor. Mesmo assim, o rapaz ficou
gratificado. E, exagerando um pouco na alegria, decidiu se casar com a filha
do mesmo fabricante de licores que o incentivara. Aos 23 anos, fez aquilo
que no Nordeste brasileiro ainda chamam de "convolar núpcias" com Margarida
Barezzi, moça de 22 anos, que lhe deu um casal de filhos -e muito azar na
vida. Pouco depois, Verdi perdia tudo: OS filhos e a mulher (levados pela
morte) e a inspiração. Caiu na fossa e prometeu nunca mais ler uma linha de
música.
Perdeu até mesmo o emprego, pois o editor Ricordi havia lhe encomendado três
óperas a título de experiência. Verdi largou tudo e foi morar numa pensão,
onde passava o tempo lendo a Bíblia.
Volta e meia, algum empresário desvairado sugeria que ele lesse um libreto,
mas Verdi se recusava: não escreveria uma nota sequer, para todo o sempre.
Até que surgiu um desvairado mais teimoso que OS outros e deixou em suas
mãos um libreto de Solera, cuja primeira página trazia um Nome em letras
góticas: "Nabuco".
Verdi cometeu um erro: abriu o libreto ao acaso e deu com um verso perdido
no texto: "Va pensiero, sull'ali dorate...". Para quem andava lendo a Bíblia
a história do cativeiro DA Babilônia era interessante.
Além do mais, a Itália vivia o seu próprio cativeiro, dominada pela Áustria.
Verdi compreendeu a intenção de Solera: transpor o drama dos hebreus
dominados junto aos rios DA Babilônia para a sua própria pátria espezinhada
pelo Grande império dos Habsburgos. Não conseguiu dormir naquela noite. Os
versos estavam em sua cabeça: "Va pensiero". Até hoje, esse coro de escravos
serve de hino para todos OS oprimidos em qualquer parte do mundo.
Dias depois, a ópera estava pronta e encenada. O povo não apenas gostou DA
ópera mas DA mensagem que ela trazia. O Nome Verdi virou anagrama: "Vittorio
Emanuelle, Re d'Italia". Verdi passou a ser uma senha de liberdade. Mais uma
vez, um artista demonstrou que a censura não atrapalha a inteligência
-quando há inteligência.
Minimamente, o que se pede aos artistas é que else sejam mais criativos do
que OS censores. As autoridades austríacas chegaram a comparecer à estréia
de "Nabuco" e só entenderam que haviam comido mosca quando ouviram a platéia
se levantar, durante o coro dos hebreus, cantando junto com OS artistas.
Houve mortos e feridos depois, mas o grão DA liberdade estava plantado. A
Itália, unificada, libertava-se do jogo estrangeiro.
11.09.2007
Verdi: como vencer a censura
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